quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Sobre o amor e seu trabalho silencioso

Eu sei, Rilke aconselha os jovens poetas, que não falem de amor já que a chance do escorregão é grande. Mas a realidade é que não há outra opção então arrisca-se. Que seja.  
Há uma música em um álbum (Vagarosa) da cantora Céu que tem nome bonito: “Sobre o amor e seu trabalho silencioso”. Aqui me fio apenas no título por este alcançar força própria, autônoma. Ele diz tanto porque é realmente assim: de um ato inocente, despretensioso, por vezes lúdico, brota o tal, ainda pequenino, de alguma profundeza densa e misteriosa do ser. Lá ele se alimenta de algo sem nome e cresce invisível, se movimenta ligeiro, serpenteando entranhas, ainda que discreto; insistente e perturbador. Uma cria estranha. De repente, por gigantesco que está, irrompe. Extravasa. Só restando a quem o abriga dar conta do recado, desse tamanho tanto. Coisa de gente grande. Um outro recado de poeta é: vivê-lo é razão para que se safe de uma existência vulgar. Consolo. 

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Pisco e Isabel Allende


Recebi um jornalzinho local, do estilo “Metro”, para ler no vôo de quarenta minutos da Star Peru, que separa as cidades de Puerto Maldonado e Cusco.  Quase nada me chamou atenção nele a não ser uma manchete popularesca sobre Isabel Allende: “Escritora chilena mente!” .  Ah? Fui com sede ao pote em busca de uma baita fofoca literária e nada. A indignação  residia numa declaração banal sobre a origem da tradicional bebida peruana, o pisco, que segundo ela na realidade é chilena. Revolta da imprensa peruana e de quem vive lá do turismo gastronômico. Tanto faz, pensei. No entanto, a noticia teve o mérito de aguçar minha curiosidade acerca desta consagrada escritora, e a lembrança de que nunca havia lido nenhuma de suas obras. 
Aproveitei uma manhã livre, quando meus companheiros de viagem ainda dormiam no hotel, para visitar uma livraria na bela cidade inca . Surpreendi com o fato dela conter muito mais de Paulo Coelho que de  Mario Vargas Llosa. Depois veio a dica, é porque Cusco é uma cidade mística. Ah, boa.
Mas voltando a Allende, encontrei lá uma edição espanhola de bolso: da Debolsillo (foto acima). Barata e bonita. Escolhi “De amor y de sombra”, por ser uma das suas obras mais famosas, pela sua representatividade. Além do título bonito, atraente.
Agora impressões: Isabel Allende, como o pisco, tem origem dupla: nascida em Lima, naturalizada chilena. Sua obra, doce como a bebida, como ela também nos aparta da realidade somando pouco. Distrai, diverte e basta. Leitura fácil de férias descompromissada. Isso porque a caracterização dos personagens fica rasa como são rasos e fáceis os clichês: a heroína jornalista, forte e doce, de intenções nobres,  apaixonada pelo bom, justo e pobre fotógrafo comunista. O militar homofóbico, atlético e tradicional. O cabelereiro gay , elegante e rico. A dicotomia óbvia entre ditadura e comunismo - bem e mal. De repente um poema de Neruda aparece- era o que faltava. Óbvio... Assim como “A Casa dos Espíritos”, possui bons ingredientes para filme de sucesso. Mas não muito mais que isso: entretenimento. Caso não seja esse estritamente o foco do leitor e se, como agravante, tiver pouco tempo não arrisque: fique com os gigantes: Dostoiévski, Guimarães Rosa, Thomas Mann. E afins.


quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Por muito tempo achei que desejo fossem pernas e bocas e seios.
Fossem - tão somente - tais chamas, tais desvelos. 
Glamoures do amor intenso.
Hoje vejo que desejo é um procurar qualquer. Um ensejo.
Que nos permita levantar da cama quando o despertador toca.
E que cada diferente desejo é um só desejo: O mesmo.
E que nenhuma vontade é banal.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011



Revi neste final de semana o programa “Ensaio” com Elis Regina. As tomadas em close do seu rosto expressivo, das suas mãos inquietas, a bela fotografia e o formato da gravação – onde o entrevistador não aparece – contribuem para a comunicação não só de informações mas também de sentimentos. Seus depoimentos verdadeiros, desprendidos de pretensões vaidosas (parece até que ela esquece que está sendo filmada) e suas interpretações ora melancólicas, ora alegres, ao sabor das lembranças e estados emocionais a que é levada no andar da entrevista, fazem com que tudo fique muito bonito e comovente.  
Selecionei este trecho em que Elis alude ao amigo Cyro Monteiro, sambista carioca, falecido no mesmo ano da gravação do programa, 1973.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Setembro

 Uma daquelas coisas bobas e simples que mais gosto de fazer é ficar do alto de uma sacada bebericando algo delicioso e ouvindo música enquanto olho São Paulo de cima, especialmente à noite. Olhar sua imensidão de luzes, seus montes de prédios (onde algumas cabecinhas também olham) e o andar frenético dos automóveis, das pessoas, feito formiguinhas, indo, passando, não só me acalma como deleita. Em contraponto à apatia provinciana, a vastidão complexa da capital finaliza suas noites fazendo-nos sempre uma bela promessa: a de um novo dia para o dia seguinte. Esperança e liberdade - é o que a capital fornece. E vontade de ser vário, de ser grande, de ser mais de um em um só. Um não contentar-se, mas contente (desculpe furtar essa de Camões, mas a ocasião merece). De estar para sempre em movimento, a espelho dela. À Paulicéia torno, eu que amar, senão tal desvario, não posso.