terça-feira, 6 de maio de 2014

De Encontro



Era terça-feira, o céu  finalmente estava azul e limpo após três dias cinzentos e molhados.  Helena abriu a janela deixando que uma luz branca invadisse seu quarto e revelasse a brancura dos lençóis embaralhados na cama. Enquanto escovava os dentes sentiu o cheiro de café. Pedro já estava na cozinha, provavelmente lendo o Valor Econômico. Ele fazia questão de acordar um pouco mais cedo e tomar conhecimento das últimas notícias do universo financeiro: os juros, o câmbio e as ações; a recente medida do Banco Central para conter a inflação, o saldo da Balança Comercial, a expectativa do PIB, as últimas fusões empresariais e o boom imobiliário.  Essas informações serviam-lhe não só para aplicar melhor seu dinheiro como para travar longas conversas com outros homens, no trabalho, no futebol e no bar. Helena orgulhava-se desse gosto natural de Pedro, dessa ambição vertiginosa, a qual associava a força e virilidade. Isso era coisa de homem. E foi graças a esse ímpeto que haviam conseguido comprar à vista aquele apartamento que tanto amava.  Eles eram os primeiros moradores de um duplex moderno, de duzentos metros quadrados, com sacada gourmet  e área de lazer equipada com piscina aquecida, academia, quadra de tênis e um salão de festas cuidadosamente estruturado para que não parecesse um  simples salão de festas de um prédio de classe média.         
        Helena maravilha-se com os detalhes tecnológicos daquele empreendimento: o elevador que obedecia a um simples comando de voz e a porta do seu apartamento que abria ao leve toque de seu dedo indicador no painel digital instalado ao lado da maçaneta.  Os equipamentos eletrônicos adquiridos para a mobília eram todos de última geração e das melhores marcas: desde a cafeteira que prometia extrair do grão seu mais precioso aroma até a televisão 3D com home theater. Tudo tão diferente da vida caipira e de classe média baixa que sua mãe havia lhe proporcionado  e que lhe custara tantos momentos de raiva e inveja mal disfarçados.  Como havia odiado aquela casa velha e antiga, repleta de remendos e móveis de mau gosto. Quantas vezes havia se desculpado às amigas pela simplicidade do lugar: “não repare Fulana, minha casa não é chic como a sua...”
        E como detestava a vulgaridade de sua mãe, mulher inculta e divorciada, cujo passatempo no final de semana era ir ao forró com as amigas, quarentonas e solteiras elas também. Como detestava tudo aquilo. Que humilhação e vergonha.  Por isso, a tudo quanto se dedicara na vida, consistira em escapar de igual destino. Sua obsessão era tanta que deixara de lado todos outros possíveis desejos de seu espírito. Na realidade ela mal os conhecia.
Mas nada disso importava de fato. Pois agora era tudo diferente: realizavam viagens ao exterior todo ano, hospedavam-se em hotéis cinco estrelas no Caribe, visitavam vinícolas em Mendoza , faziam cursos de inglês em Londres.  Pedro havia se matriculado em uma degustação semanal de vinhos franceses para que tivesse a mesma familiaridade com a bebida que um natural de Bordeaux.  Helena sentia uma consciente, muito embora oculta, necessidade de mostrar parte do seu sucesso a amigos e familiares. Quase chegara a postar fotos suas em uma rede social, mas sabendo da deselegância que consistia o exibicionismo barato, encontrou meio mais nobre: presenteando amigos e familiares com o que de melhor encontrava, vestindo as  roupas mais caras da última moda.  Além disso, organizava generosos jantares em sua casa, que agora era razão de exibição. Ela era amabilíssima, estava sempre pronta a oferecer favores, em especial aos menos providos. Amava-os com a mesma intensidade que se enraivecia diante dos mais abastados e dos mais cultos. Também possuía a convicção mais íntima de que o altruísmo a faria melhor que seus vizinhos egoístas: aquela detestável classe média paulistana que só se preocupava em ir ao shopping.  Assim, depois de fracassadas tentativas, havia conseguido entrar em uma ONG responsável por crianças carentes. Ali exercia o chamado trabalho voluntário que supostamente nada remunerava, a não ser sua vaidade e sua consciência conflituosa. Era sua função levar os pequeninos aos museus e parques de São Paulo nos finais de semana e em dezembro organizar a campanha de arrecadação dos presentes natalinos. Helena almejava também ser simples. Queria tendo, ser desapegada.
Naquela terça-feira, ela terminou de se maquiar e, apressada, despediu-se de Pedro selando-lhe um beijo cuidadoso para que não estragasse o batom. No elevador apenas disse : “subsolo 1” e o mesmo desceu rumo a garagem. À distância vislumbrou seu carro novo, reluzindo prateado. Ao seu lado, Sandra e Carlos, o casal do apartamento 202 lhe cumprimentou: “Belo carro hein Helena, uma nave!” ao que ela respondeu repleta de pudor: “ahh... não é nada de mais...”. Ligou o motor e arrancou o possante ganhando as ruas, mas não sem antes passar pelas cabines de controle de acesso do seu condomínio, as quais registravam o fluxo de entrada e saída dos moradores por motivos de segurança. Entre indignada e satisfeita refletiu em quão torpes eram aqueles seus vizinhos por darem atenção ao seu carro. Repetia : “aff é só um carro...!” e depois “bando de invejosos!”.  
Uma de suas canções preferidas começou a tocar na rádio, o que fez com que seu pensamento relaxasse. Gostava daquela música não só porque era a música do momento, que não parava de tocar nas academias e nas baladas, mas também porque lhe trazia boas lembranças como a da festa de casamento de sua melhor amiga, em que ela e Pedro haviam sido tão performáticos, tão extraordinariamente divertidos, que quando a banda parou de tocar todos a sua volta bateram palmas e vieram lhe cumprimentar. Por alguns segundos fechou os olhos e cantarolou:

“In the night the stormy night she'll close her eyes
In the night the stormy night away she'd fly
And dreams of
Para-para-paradise”

Um estrondo. Helena abre os olhos: freia. O carro ainda avança alguns metros. Uma menina de sete anos está suspensa no ar. Da sua cabeça, coberta de finíssimos fios castanhos, escorrem gotas de sangue. Sangue da cor do seu pequenino vestido vermelho. Papéis brancos que a menina segurava voam pelo céu. Uma mulher grita na calçada. Helena também grita. É a primeira vez que todos nós ouvimos sua voz de loucura e desespero. Paralisada, ela encosta a cabeça no volante, olha para o chão do carro e chora como nunca antes na vida. Helena berra tão alto que eu ouço aqui do décimo primeiro andar.


sábado, 14 de setembro de 2013

One Art



"The art of losing isn't hard to master; 
so many things seem filled with the intent
 to be lost that their loss is no disaster. 

Lose something every day. Accept the fluster 
of lost door keys, the hour badly spent. 
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster: 
places, and names, and where it was you meant 
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
 next-to-last, of three loved houses went. 
The art of losing isn't hard to master. 

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
 some realms I owned, two rivers, a continent.
 I miss them, but it wasn't a disaster.

—Even losing you (the joking voice, a gesture 
I love) I shan't have lied. It's evident
 the art of losing's not too hard to master
 though it may look like (Write it!) like disaster"

Elizabeth Bishop

sexta-feira, 6 de setembro de 2013



Aquiles enfrentou seu luto por  Patroclo sujando suas mãos de sangue.  Atravessou sua própria dor pela brutalidade da guerra , pelo assassinato de Heitor, pela loucura da morte e do ódio cego.  Mais sorte ele possui,  por poder dar destino heróico e sentido à insensatez dos acontecimentos da vida. Ainda que, para isso, não tardasse a chegar o castigo dos deuses e, desse fato, a tragédia.  Porém , mais trágica que a própria tragédia é a pequeneza de espírito. Pois pobre daquele que perde seu melhor amigo para o egoísmo, o tédio , o orgulho e a vaidade.  O ato heróico é inseparável de um inimigo nobre, cujo rosto se vê. Então , o que se faz com um vilão cujo espectro é o rosto difuso da mediocridade? Antecipa-se a desistência. E louva-se a letargia: apenas morre-se aos poucos.


quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013



Engana-se quem pensa que a morte é tão somente o cessar das nossas funções vitais. A morte é o tempo que nos transforma em outro com seu andar. Tenho saudades de quem eu era , das minhas ilusões. Lá eu vivia feliz, como um bobo alegre que faz corte ao rei e a ele se entrega por completo. Ai bufão que eu era: sorridente e tagarela.  Cego  em meus devaneios, na redoma calorosa da bondade e do sonho.  E aquele narcisismo acrítico então...só deixou boas lembranças!  Eu que , não vendo vaidades em mim,  tampouco as via no outro, podendo amá-lo mais sinceramente...
Mas a foice do tempo e da morte me espreitou matando quem eu era. E agora lamentar é como gritar ao vento.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013


                                                                                                                                                                                                                  
A gente aprende que ser herói é fazer grandes feitos, ser o primeiro colocado, vencer, prender bandidos, salvar inocentes. Quando na verdade, ser herói é simplesmente salvar a si mesmo.  É acordar todo dia de manhã para trabalhar, ainda que seja um trabalho chato, entediante ou sem sentido e dar a ele algum sentido. Realizá-lo bem porque é preciso. É preciso por respeito a si próprio, para que seu tempo ao menos tenha sido utilizado de forma minimamente digna.  Já que somos obrigados a trabalhar, por necessidade, que de alguma forma seja um trabalho apreciável, que nele contenha sinais de talento, esmero ou perfeição. Se fossemos outro e nos observássemos à distância, o que veríamos então? Gostaríamos? É não deixar ser contaminado pelo “monstrinho” da preguiça, da mediocridade. Além disso, é tentar ser um pouquinho menos ignorante todos os dias, um pouquinho mais generoso em um sistema econômico que estimula tanto a competitividade e o individualismo. É fazer sempre um exercício de humanidade e humildade e perceber  nossas fraquezas, que muitas vezes são as fraquezas de todos nós, fraquezas humanas: inveja, covardia, medo, soberba,  vaidade, orgulho...e tentar contornar isso tudo, através de um ato diário de força contra o que há de mais vulgar e grotesco dentro de nós mesmos.


quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O encontro


Ali estão os dois sentados, na mesa do café do shopping. Ele toma café preto, ela capuccino. Você não os vê? Venha mais a direita, agora sim! Olhe, aquele é o Rafa, veja como ele sabe sorrir de forma amena, possui a voz suave e estilo despojado, barba mal feita e tênis all star. Há-há! Não é típico? Aquela ali é a Paty que,  ao contrário, preocupou-se em se arrumar dentro de um padrão mais básico: salto, maquiagem e jeans. Sim! Ela é bonita... não se anime ainda, é cedo. Continuemos observando (aparentemente chegaram há pouco) .

.... eu não vou condená-la; ela veio me dizer aquilo a respeito do Jorge, achando que ficaria contra ele e a verdade, Paty,  é que não ficarei do lado de nenhum dos dois. Está certíssimo, não vale a pena, você sabe né, que os dois têm suas razões, ninguém é perfeito. É claro que sei , por isso mesmo! Ele possui um gênio difícil e ela.... ai.. eu sei Paty, vai parecer maldade, não  me leve a mal, você sabe melhor do que ninguém  que não sou disso... mas a verdade é que ela precisa arrumar logo um namorado, anda  tão cinza,  amargurada, você não acha? Eu não queria falar mas já que você falou! Tá na cara que é isso , por trás daquele ar de independência há muita frustração, eu sei que há...

Ei meu chapa! Esta escutando? Claro que sim, e por que você me trouxe aqui? é só para ouvi-los brother , só isso. Hmmm então me diga,  qual  a razão dos dois se encontrarem?  Eles são amigos de longa data,  não se veem há, provavelmente, anos;  Amigos? Isso, amigos de faculdade, eu chequei antes de sair de casa, estudaram juntos  ! Ah malandro, agora não é hora para ironias,  você entendeu.  Voltemos nossa atenção a eles.

....o Rodrigo me ligou semana passada, ele anda tão materialista Rafa, precisa ver, só fala de dinheiro . Está cada vez mais vazio, chato , superficial; sabe aquela pessoa que não pensa em alimentar o espírito só o bolso. Quando eu disse para ele aproveitar  já que está ganhando bem e fazer umas viagens , curtir a vida, sabe o que ele me respondeu? Que preferia guardar e aplicar o dinheiro no mercado de ações.  Ai que pobreza de espírito Paty! Se fosse nós  já estaríamos  de mochila nas costas, conhecendo o mundo . Deus dá asas a quem não sabe voar.  Também acho,  não sou tão consumista, tenho amigas que entram em uma loja e saem com quatro sapatos  e nem preciso dizer que parcelado haha.  Eu hein! meu dinheiro vai todo para viagem, isso sim fica para a vida toda.....

Olha... já  estão se levantando. Quanto tempo ficaram conversando? Talvez uma hora? Espera , ainda tem o derradeiro abraço, a despedida calorosa ! Escute!

Paty, queridona ! foi tão bom conversar com você , saudade danada da sua risada gostosa. E continua linda, felizardo é o Carlinhos hein! Quando virão os filhos? Não sei querido, primeiro estabilidade financeira, você viu o preço das escolas , dos imóveis? só sei quem será o padrinho, meu grande amigo aqui! Não vamos mais ficar tanto tempo sem nos ver assim querido, você faz tanta falta, fiquei tão feliz em saber mais de você.  Eu também Paty, quero ter sempre notícias suas, eu sei que a vida é corrida mas não suma. Ah.. depois envio as fotos pela internet. Já sinto saudades ! Tchau meu lindo. Tchau.

E então camarada? Que tal ? Para mim basta. Para mim também; é o suficiente. E o que faremos? Estou na dúvida se uma bomba ou uma tese. Talvez seja melhor um conto. Eu prefiro simplesmente ir ali e tomar um milk shake.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013


Não ouso definir o amor , mas contrariar uma idéia presente no discurso  cotidiano a respeito dele . Uma idéia ilógica e vulgar, que por tanto, deforma o sentido vivo de estar sob o estado amoroso, empobrecendo nossa experiência emocional. Minha motivação partiu de encontrar-me hoje envolvida em uma conversa entre mulheres bonitas e bem sucedidas que bem poderiam  ser protagonistas de uma série de televisão à moda “sex and the city”. E então ouço a queixa de uma delas a respeito de sua ida infrutífera à balada, onde não “pegou” ninguém. Como dizem por aí ficou no zero a zero.  Em seguida, uma delas é aconselhada a passar um feriado na localidade x e não na y porque aqui não encontrará quem seja “pegavel”, só gente feia (sabe-se lá quando se ama quem é feio quem não é?) . Não demora a surgir uma nova queixa: a de que em determinado lugar os homens eram cerca de cinco anos mais novos que elas, e por isso, não pegáveis. Por  fim, o lamurio final, o de que o mercado de homens está escasso. Não é pavoroso dizer “mercado de homens”? No entanto, a expressão é plenamente coerente com o conjunto do discurso descrito acima. Seria de conseqüência isenta trazer uma palavra própria da atividade mercantil para definir os percalços do encontro amoroso? É claro que não.
Essas são falas que ouvi hoje e não ouvi hoje. Porque levando em conta suas  variações, é uma fala revivida, repetida por outras bocas em outros momentos.  Não cito a fala masculina por aqui não caber e não estar nela envolvida.  Mas de modo algum negaria seus  vícios, nem sua cruel agressividade. Quem nunca ouviu as condições (mentirosas) deles para seu próprio objeto amoroso: jovem, magra, submissa.  De todo modo, mover-se por vingança não pode ser vantajoso. Tampouco por insegurança, ou defesa. A questão amorosa não pode se valer de estratégia para funcionar.
Aliás, do que se vale o amor? O incoerente é que tal pergunta não se faz, porque tanto mais se entende o amor quanto mais se sente, e menos se raciocina sobre ele. Talvez por isso quem mais o defina é aquele que mais o exprima pela intuição, pela via indireta do dizer: a poesia, a música, a pintura. O gesto ,o  olhar, o pulsar. Por isso é melhor pensá-lo como um disparo de Cupido, algo súbito que só a fantasia explica.
Pelo amor ser indeterminado e distante de figuras pré moldadas é que o discurso acima me espanta. É demasiado utilitarista. Como se buscar um amor não fosse tão diferente de buscar sucesso ou investimento. Por que a probabilidade de encontrá-lo é maior aqui e não ali? Como saber previamente quais características nele serão amáveis? Quem pode dizer quando ou quem amaremos a não ser Cupido?
 Há uma certeza moderna de que hoje, a mulher é livre e independente para amar quem quer que seja. Quando na realidade, ser livre no amor é simplesmente buscá-lo sem ambições de sucesso, é esperá-lo como se espera a vontade onipotente de um bom deus. 

terça-feira, 3 de julho de 2012


Pudera ter sonhos, febril
Pudera ter artes, querelas
Pudera ser forte gentio
Pudera ser outro pudera

Quem sabe nadar pelos rios
Quem sabe corrê-los a vela
Pudera ser nobre gentil
E quereria então a donzela

Pudera tecer outros fios
Pudera esquecer tais mazelas
Pudera ser outro, sadio
Um outro em mim prepondera



segunda-feira, 4 de junho de 2012

quinta-feira, 10 de maio de 2012