Era terça-feira, o céu finalmente estava
azul e limpo após três dias cinzentos e molhados. Helena abriu a janela deixando que uma luz
branca invadisse seu quarto e revelasse a brancura dos lençóis embaralhados na
cama. Enquanto escovava os dentes sentiu o cheiro de café. Pedro já estava na
cozinha, provavelmente lendo o Valor Econômico. Ele fazia questão de acordar um
pouco mais cedo e tomar conhecimento das últimas notícias do universo
financeiro: os juros, o câmbio e as ações; a recente medida do Banco Central
para conter a inflação, o saldo da Balança Comercial, a expectativa do PIB, as
últimas fusões empresariais e o boom imobiliário. Essas informações serviam-lhe não só para
aplicar melhor seu dinheiro como para travar longas conversas com outros homens,
no trabalho, no futebol e no bar. Helena orgulhava-se desse gosto natural de
Pedro, dessa ambição vertiginosa, a qual associava a força e virilidade. Isso
era coisa de homem. E foi graças a esse ímpeto que haviam conseguido comprar à vista
aquele apartamento que tanto amava. Eles
eram os primeiros moradores de um duplex moderno, de duzentos metros quadrados,
com sacada gourmet e área de lazer equipada
com piscina aquecida, academia, quadra de tênis e um salão de festas
cuidadosamente estruturado para que não parecesse um simples salão de festas de um prédio de
classe média.
Helena
maravilha-se com os detalhes tecnológicos daquele empreendimento: o elevador
que obedecia a um simples comando de voz e a porta do seu apartamento que abria
ao leve toque de seu dedo indicador no painel digital instalado ao lado da
maçaneta. Os equipamentos eletrônicos
adquiridos para a mobília eram todos de última geração e das melhores marcas:
desde a cafeteira que prometia extrair do grão seu mais precioso aroma até a televisão
3D com home theater. Tudo tão diferente da vida caipira e de classe média baixa
que sua mãe havia lhe proporcionado e
que lhe custara tantos momentos de raiva e inveja mal disfarçados. Como havia odiado aquela casa velha e antiga,
repleta de remendos e móveis de mau gosto. Quantas vezes havia se desculpado às
amigas pela simplicidade do lugar: “não repare Fulana, minha casa não é chic
como a sua...”
E como detestava a vulgaridade de sua
mãe, mulher inculta e divorciada, cujo passatempo no final de semana era ir ao
forró com as amigas, quarentonas e solteiras elas também. Como detestava tudo
aquilo. Que humilhação e vergonha. Por isso, a tudo
quanto se dedicara na vida, consistira em escapar de igual destino. Sua
obsessão era tanta que deixara de lado todos outros possíveis desejos de seu
espírito. Na realidade ela mal os conhecia.
Mas nada disso importava de fato. Pois agora era tudo diferente: realizavam viagens ao exterior todo ano, hospedavam-se
em hotéis cinco estrelas no Caribe, visitavam vinícolas em Mendoza , faziam
cursos de inglês em Londres. Pedro havia
se matriculado em uma degustação semanal de vinhos franceses para que tivesse a
mesma familiaridade com a bebida que um natural de Bordeaux. Helena sentia uma consciente, muito embora
oculta, necessidade de mostrar parte do seu sucesso a amigos e familiares.
Quase chegara a postar fotos suas em uma rede social, mas sabendo da
deselegância que consistia o exibicionismo barato, encontrou meio mais nobre:
presenteando amigos e familiares com o que de melhor encontrava, vestindo as roupas mais caras da última moda. Além disso, organizava generosos jantares em
sua casa, que agora era razão de exibição. Ela era amabilíssima, estava sempre
pronta a oferecer favores, em especial aos menos providos. Amava-os com a mesma
intensidade que se enraivecia diante dos mais abastados e dos mais cultos.
Também possuía a convicção mais íntima de que o altruísmo a faria melhor que
seus vizinhos egoístas: aquela detestável classe média paulistana que só se preocupava
em ir ao shopping. Assim, depois de fracassadas
tentativas, havia conseguido entrar em uma ONG responsável por crianças
carentes. Ali exercia o chamado trabalho voluntário que supostamente nada
remunerava, a não ser sua vaidade e sua consciência conflituosa. Era sua função
levar os pequeninos aos museus e parques de São Paulo nos finais de semana e em
dezembro organizar a campanha de arrecadação dos presentes natalinos. Helena
almejava também ser simples. Queria tendo, ser desapegada.
Naquela terça-feira, ela terminou de se
maquiar e, apressada, despediu-se de Pedro selando-lhe um beijo cuidadoso para
que não estragasse o batom. No elevador apenas disse : “subsolo 1” e o mesmo
desceu rumo a garagem. À distância vislumbrou seu carro novo, reluzindo prateado.
Ao seu lado, Sandra e Carlos, o casal do apartamento 202 lhe cumprimentou:
“Belo carro hein Helena, uma nave!” ao que ela respondeu repleta de pudor:
“ahh... não é nada de mais...”. Ligou o motor e arrancou o possante ganhando as
ruas, mas não sem antes passar pelas cabines de controle de acesso do seu
condomínio, as quais registravam o fluxo de entrada e saída dos moradores por
motivos de segurança. Entre indignada e satisfeita refletiu em quão torpes eram
aqueles seus vizinhos por darem atenção ao seu carro. Repetia : “aff é só um
carro...!” e depois “bando de invejosos!”.
Uma de suas canções preferidas começou a
tocar na rádio, o que fez com que seu pensamento relaxasse. Gostava
daquela música não só porque era a música do momento, que não parava de tocar
nas academias e nas baladas, mas também porque lhe trazia boas lembranças como
a da festa de casamento de sua melhor amiga, em que ela e Pedro haviam sido tão
performáticos, tão extraordinariamente divertidos, que quando a banda parou de
tocar todos a sua volta bateram palmas e vieram lhe cumprimentar. Por alguns segundos fechou os olhos e cantarolou:
“In the night the stormy night she'll close her eyes
In the night the stormy night away she'd fly
In the night the stormy night away she'd fly
And dreams of
Para-para-paradise”
Para-para-paradise”
Um estrondo. Helena abre os olhos:
freia. O carro ainda avança alguns metros. Uma menina de sete anos está
suspensa no ar. Da sua cabeça, coberta de finíssimos fios castanhos, escorrem gotas
de sangue. Sangue da cor do seu pequenino vestido vermelho. Papéis brancos que a menina segurava voam pelo céu. Uma mulher grita na calçada. Helena também grita. É a primeira vez que todos nós ouvimos sua voz de loucura e desespero. Paralisada, ela encosta a cabeça no volante, olha para o chão do
carro e chora como nunca antes na vida. Helena berra tão alto que eu ouço
aqui do décimo primeiro andar.