segunda-feira, 12 de dezembro de 2011


Amanheci remoendo o que havia sonhado. Ou não havia sonhado?  Um homem que cantava rap como um contralto. Um negro suntuoso, de barbas grossas e voz cheia de mágoa. Cantava tão grosso, tão cheio de dor e ferida aberta. Cantava por toda esta cidade triste e vazia que já não sabe o por quê do seu oco impuro de nada, nem dos seus gastos extraordinários: comilanças, pujanças, desvarios de criança mimada. Sabe menos ainda de você Homem Negro, da sua fome, que é só tardança e graça de fazer a fome passar. Nem sabe do amém jurado que dá sua voz quando bala voa e passa longe do seu peito. Todo esse seu risco de vivência, quem sabe? E do seu perambular de abutre: fétido colhedor de carnes.
E eu? Endoideci Homem Negro? Adoeci? Quero que me diga. Diga! Você veio como um deus que sobe por debaixo da terra, viril. Tentei evitá-lo pelo vidro fumê, pelas vitrinas dos shoppings centers, pela minha solidão.  E já não mais. Veio enquanto dormia empertigando-me, enforcando meu coração a gritos e invocando-me para sua guerra crua (queria tanto que fosse só sua). Sua só. Deixo a infância para trás agora que o vejo duro, bruto, gemendo forte. Olho para seu rosto rasgado de vida puída, que é senão o meu rosto de vida doida também. Somos um só rosto de homem pardo: eu sou crioulo. Seus dentes podres, sua infecção e seu cobertor de pulgas são corpos da minha alma doente de classe média culpada. Eu sou. Quero salvar-me da vida vulgar que levo quando ignoro-o ( todos que o ignoram são vulgares). Você insistiu que o visse na bruma da noite enquanto eu dormitava tranqüila (tranqüila?). Agora, de olhos abertos, encontro-o de novo e de novo em tudo: nas ruelas baixas, nos prédios altos, nas coberturas e nos shows de jazz. O restaurante fino, no qual tanto me divertia já nem faz sentido, nem minhas bolsas, meus perfumes. Que se dane tudo isso negro magoado, negro favelado de fome. Homem forte. Você que roubava minha carteira e meus aparelhos eletrônicos. Agora é tanto pior que já rouba meu sono. Por isso não lhe dou esmolas nem rezo mais, que a missa não me expia. Você me espia enquanto durmo, me vigia. Você com seu grito desgraçado me diz que sou desgraçada também, sou sua favela. Eu, no décimo sexto andar sou o morro e o pontilhão, o viaduto. Encontro-o Homem Negro, onipresente: na lua bege, no chão cinza de São Paulo, no céu cinza de São Paulo, nas caras cinzas de todas as pessoas cinzas desta cidade. E não sinto piedade alguma. É raiva de soldado incauto.  É tanta raiva.



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