Bruta solidão Vitória, bruta. Arremeda o som do pássaro, canta a gaivota , imita o verão. Não urubus, não a realidade. Não a pedra e a mata verde escura, não o rio que inunda e os homens rotos. Nada de casas toscas, madeiras empilhadas, cobras serpenteando águas enlameadas no fundo do quintal, ruas esburacadas. Vitória quer criar-se através do oculto, das histórias e dos mistérios. A passividade lhe aflige, a formação do seu ego é uma imensa batalha travada pela ação. Criar-se, trabalho hercúleo.
Assim, em um dia comum, Vitória se esclarece. Percebe que só receber os estímulos do mundo não mais lhe cabe. Que assim será a não ser ninguém. Resolve no dia doze do mês de outono arremessar-se, despir-se da sua “persona”. Quem mais? Ela, só ela; então Vitória. Primeiro quis desfazer-se de tanta lógica, tanta linguagem pensada que desfigurava seu ser – deformava-o. Procurou lembrar dos seus sonhos , do que lhe aparecia de olhos fechados, relatos de outro continente. Mergulhou cheia de medo nessas águas escuras, relatou em papéis toda a violência do outro mundo e seus desejos inconfessáveis. Vitória ardeu naquele labirinto, morreu de sede e de fome, enfrentou figuras mitológicas, viu dragão, depois minotauro, colocou sua boca na boca de outros sexos. Também quis matar. Vitória não era boa nem má. Vitória insensata cheia de ódio amarelo, raiva vermelha. Vitória, de repente, era azul.
Febril amplidão Vitória, febril liberdade de ser. Desde então ativa, pois sôfrega por seu temerário caminho, por sua breve estada. A consciência da fugacidade do tempo, da infinita renovação das coisas a qual faz parte, do retorno e retorno e retorno. Desde então sua dor e si: essas duas fontes –duras fontes- de vida e enfrentamento. Despe-se, procura o contato com o próprio corpo, conhecer-se como sensação física. Seu corpo não era menos de si, ele dirigia suas vontades como um deus rumo ao indistinto, ao não planejado. Ele como fonte de força e graça. Nua pôs a mão em si, pôs seu corpo sobre outro e através do outro percebeu-se. Ser pleno é atravessar um outro Vitória – não é ser só. Então lapida a bruta solidão Vitória, lapida. E faz pérola o diamante.
Sim, que esteve cativa, anos e anos no embuste padrão, naquilo que não se sente. Não se sente, não se é. Agora liberta, Vitória busca uma arte, uma expressão para si, suas cores. É preciso dizer a seu modo, claro. Então sê , então diz: invólucro, água, gato, arremata. Diz tudo que lhe encanta. Afinal, afinal. Canta mais. Seguiu uma busca por corantes, adquiriu aquarela e desenhou no papel alguns traços: redondos, retos, entrelaço. E formou uma imagem multicores inexata, sem igual na natureza ou somente na natureza de si mesma. Lindamente capturou-se na tela e mostrou-a em exposição nacional. Outros olhos a sentiram delicados, todos nela. Vitória nascida, renascida. Vitória eterna.
Nenhum comentário:
Postar um comentário