sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Um Homem Subterrâneo

Devia era de estar aborrecido, crendo a vida lugar de poucas satisfações para ter feito o que fez. Ou pegou nojo de realidade, quem sabe?
O fato é que meu pai se emburacou para nunca mais voltar. Deu que no dia dezesseis, acordou emburrado, de olhos longos e fundos, cheio de remelas por cara não lavar e saiu para a rua como de costume, oito em ponto, com maleta cheia de livros de histórias. Depois voltou jamais, nunca mais o soube de vista, só de ouvidos. E falaram que ele quis viver feito minhocuçu, aterrado em subsolo da grande cidade.  É o que se conta. Vi eu não vi, mas não duvido nem nego. Bem capaz, é o que digo, se me perguntam.
Sei que ele era homem de letras e que seu maior divertimento era essa coisa tola de ler sentado no metrô. Ele me dizia que detestava quando o destino se achegava porque deveria interromper a leitura, subir as escadas e voltar à quentura do sol, para suar que nem cão sujo e empertigar-se de tanta crueza e chatice de vida. Quando víamos juntos as celebridades na televisão ou alguma alma empinada de si pelas calçadas, ele se ria dizendo que a nobreza de hoje é senão uma piada, que se existiu nobre um dia foi aquele do já existido em Idade Média, de castelos e reis maiores. Dizia a mim que não me molestasse correndo atrás de todas essas coisas vãs da publicidade, nem esse status de se ter, satisfações pequenas, frutos da incompetência de se criar algo seu, de valor. Todas essas porcarias, meu filho, meu pequeno José, nada fornecem ao seu coração de menino, a não ser pequeneza de homem fraco. Se quer ser valente, brioso, tem de se aventurar por algo que lhe queime o corpo, por desafios grandes e por um belo pensar. Há de buscar o amor que não seja o comprado nem o vulgar e produzir uma arte ou um intento que seja só seu. E deve olhar para o outro para muito ajudar, que olhar só para si é canalhice de gente endemoniada. Ele , meu pai, não queria saber dessas coisas práticas da modernidade e a mim passou essa visão cética de só querer o necessário de comer e morar. Ensinou-me também a orar.
Meu amigo Carlos, que freqüentava meus lares, dizia que meu pai era somente um doidivanas. Eu nem confirmava nem desmentia, dizia apenas, bem capaz Carlos. E que seu destino não podia ser outro senão o da loucura insana, insanidades. É o que todos pensam hoje, que até documentário na televisão passou, sobre homem que morreu velho no metrô, que ali sentou com muitos livros lendo sem parar, só saindo do vagão para cagar, tomar água e comer doces sortidos que eram vendidos em uma ou outra parada. Depois retornava ao vagão a ler infinito por destinos múltiplos que jamais chegavam, a não ser o da morte um dia, sua última estação. Eu nunca liguei para tais dizeres, de pessoas impressionáveis que a tudo choca, que só saudade do meu pai eu tenho, ele que me ensinou a não ter tais espécies escrupulosas de vergonhas. Quase vergonha nenhuma, dele apreendi.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Olhar alheioso

A gente faz um esforço para que gostem da gente 
(Estamos tementes de rejeição?)
O olho do outro nos olha de esguelha, ressabiado
Que olho é esse? Contrariado?
Olho o olho do outro
Eu alho, eu óleo, eu olho
Oleoso de tanto olhar, besuntado de olho
Eu acho e suponho um impreciso não sei
No movediço olheoso de não se olhar
Alheio de si
Alheioso está

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011


Amanheci remoendo o que havia sonhado. Ou não havia sonhado?  Um homem que cantava rap como um contralto. Um negro suntuoso, de barbas grossas e voz cheia de mágoa. Cantava tão grosso, tão cheio de dor e ferida aberta. Cantava por toda esta cidade triste e vazia que já não sabe o por quê do seu oco impuro de nada, nem dos seus gastos extraordinários: comilanças, pujanças, desvarios de criança mimada. Sabe menos ainda de você Homem Negro, da sua fome, que é só tardança e graça de fazer a fome passar. Nem sabe do amém jurado que dá sua voz quando bala voa e passa longe do seu peito. Todo esse seu risco de vivência, quem sabe? E do seu perambular de abutre: fétido colhedor de carnes.
E eu? Endoideci Homem Negro? Adoeci? Quero que me diga. Diga! Você veio como um deus que sobe por debaixo da terra, viril. Tentei evitá-lo pelo vidro fumê, pelas vitrinas dos shoppings centers, pela minha solidão.  E já não mais. Veio enquanto dormia empertigando-me, enforcando meu coração a gritos e invocando-me para sua guerra crua (queria tanto que fosse só sua). Sua só. Deixo a infância para trás agora que o vejo duro, bruto, gemendo forte. Olho para seu rosto rasgado de vida puída, que é senão o meu rosto de vida doida também. Somos um só rosto de homem pardo: eu sou crioulo. Seus dentes podres, sua infecção e seu cobertor de pulgas são corpos da minha alma doente de classe média culpada. Eu sou. Quero salvar-me da vida vulgar que levo quando ignoro-o ( todos que o ignoram são vulgares). Você insistiu que o visse na bruma da noite enquanto eu dormitava tranqüila (tranqüila?). Agora, de olhos abertos, encontro-o de novo e de novo em tudo: nas ruelas baixas, nos prédios altos, nas coberturas e nos shows de jazz. O restaurante fino, no qual tanto me divertia já nem faz sentido, nem minhas bolsas, meus perfumes. Que se dane tudo isso negro magoado, negro favelado de fome. Homem forte. Você que roubava minha carteira e meus aparelhos eletrônicos. Agora é tanto pior que já rouba meu sono. Por isso não lhe dou esmolas nem rezo mais, que a missa não me expia. Você me espia enquanto durmo, me vigia. Você com seu grito desgraçado me diz que sou desgraçada também, sou sua favela. Eu, no décimo sexto andar sou o morro e o pontilhão, o viaduto. Encontro-o Homem Negro, onipresente: na lua bege, no chão cinza de São Paulo, no céu cinza de São Paulo, nas caras cinzas de todas as pessoas cinzas desta cidade. E não sinto piedade alguma. É raiva de soldado incauto.  É tanta raiva.




“E então Fritz me contou que o que lhe permitiu resistir durante os quase três anos no campo de prisioneiros no Arizona foi a autorização de ler livros: ele passou aqueles anos lendo e relendo os clássicos americanos e ingleses. E eu lhe contei que o que me salvou quando eu era estudante no Arizona, à espera de crescer, à espera da hora de fugir para uma realidade mais ampla, foi ler livros traduzidos e também livros originalmente em inglês.
Ter acesso à literatura, à literatura do mundo, era escapar da prisão da futilidade nacional, da vulgaridade, do provincianismo compulsório, do ensino vazio, dos destinos imperfeitos e da má sorte. A literatura era o passaporte para entrar numa vida mais ampla; ou seja, a região da liberdade.
Literatura era liberdade. Sobretudo numa época em que os valores da leitura e da introspecção são tenazmente contestados, a literatura é liberdade.”  
  
Susan Sontag em "Literatura é Liberdade"  - Discurso ao receber o prêmio Friedenspreis

sábado, 10 de dezembro de 2011

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Pão de açúcar: lugar de gente feliz

É provável que uma porcentagem bem alta de brasileiros já tenha presenciado ou participado de práticas racistas ao longo da vida. É provável também que a maior parte deles nem se dêem conta disso. Recentemente, enquanto fazia compras em uma unidade da rede de supermercados Pão de Açúcar, ouvi (a contragosto é verdade) um diálogo de teor racista e particularmente desagradável. Minha aversão resultou não só do conteúdo deplorável, como também do tom ameno e alegre com que a conversa se desenrolou, em meio a uma degustação promocional de vinho. A violência, quando acompanhada de alegria e descontração se torna ainda mais grotesca porque evidencia o júbilo do agressor. Stanley Kubrick choca tanto em Laranja Mecânica porque mostra exatamente essa espécie de comportamento. Afinal, quem esquecerá a cena de Alexander DeLarge espancando e cantando Singin` in the Rain ?
Não creio, é claro, que os interlocutores em questão tenham sentido o prazer maligno do personagem de Kubrick. No entanto, o assunto racista da conversa (pesado) foi recebido tão naturalmente a ponto de ser incapaz de perturbar a atmosfera leve dos sorrisos e das amabilidades, a brandura. As  protagonistas, duas mulheres – uma cliente idosa e outra funcionária jovem – revelam o aspecto difuso do preconceito, que não se restringe a uma determinada classe ou geração.
O diálogo que ouvi não é um caso isolado. Sua insensibilidade mostra a face perversa do Brasil racista. Mostra também o quão prejudicial se torna um problema social quando o mesmo é negado, disfarçado através de palavras eufêmicas como “gente de cor”, “colaborador” (trabalhadores braçais da indústria), “secretária do lar”( empregadas domésticas) , expressões tão em voga e que vieram a calhar com o sentimento conflituoso de culpa e egoísmo das classes média e alta brasileiras. Eufemismos que reforçam o estado letárgico e conformista das suas vítimas.
O cuidado com as palavras é importante. Não acredito que ações e atitudes democráticas, o respeito e a civilidade em uma sociedade, possam surgir sem que passem antes pela linguagem (ou pensamento).
A palavra escrita tem um poder maior de nos fazer refletir e trazer à tona o absurdo do real. Assim, transcrevo o que ouvi na tentativa de evidenciar o grotesco que o cotidiano pretende sempre ocultar.

                                                                               ***
Funcionária: uma vez namorei um homem “de cor” e minha mãe não gostou.
Senhora: ah ela ia gostar da minha terra, lá no sul. Só tem gente branquinha.
Funcionária: é que somos descendentes de portugueses.
Senhora: é, português não gosta mesmo. Mas agora as moças estão melhorando com essa coisa de alisar o cabelo.
Funcionária: as mulheres não gostam tanto dos homens, mas o estranho é que eles adoram uma mulata né...
Senhora: sabe o que é menina? É que quando os portugueses vieram ao Brasil só tinha mulata e índia. Aí tiveram que ficar com elas mesmo, não tiveram opção.

                                                                               ***


sábado, 26 de novembro de 2011

Breve esboço dele

Aquele modo desajeitado de andar, aquela voz truncada (como se possuísse um nó na garganta) e o discurso teatral, sim, observei. É a postura de um homem desesperado por uma identidade singular. A obsessiva e intranqüila luta por uma autenticidade monumental, derivada da crença ingênua em si, como ser exemplar, fez com que se afastasse da vida. O problema é que a busca por tal distinção (ou a tentativa de) fez com que sacrificasse prazeres importantes (de forma inconsciente mas nem por isso menos penosa). Afinal, é uma ambição que requer do indivíduo árduo labor, vasta energia despendida, e que pressupõe, acima de tudo, a falta de relaxamento. No entanto, são exatamente tais prazeres abdicados, desdenhosamente desacreditados, que poderiam tê-lo salvado deste espantoso estado de estupor em que se encontra hoje, ao restituir-lhe a espontaneidade há muito perdida. Tais abnegações, naturalmente, ele as ignora completamente, já que é incapaz não só de tomar contato com o que é prazer, como também de saber o que é desejo, de identificá-lo.
O fato é que, em algum ponto da caminhada, em alguma encruzilhada e de forma temerária, subestimou as palavras imaginando ser hábil o suficiente para determiná-las, não lhe ocorrendo, sequer um instante, a possibilidade de estar sendo determinado por elas. Perdeu-se, assim, no insidioso labirinto do discurso.
Quando, por vezes, busca o olhar do outro, o faz em vão, já que por meio do diálogo vazio, repleto de referências intelectuais soberbas, ou pela racionalização excessiva, trazendo à tona um discurso impessoal, excludente, que o distancia, inadvertidamente, do seu alvo – o indivíduo a sua frente. A razão do fracasso em afetar o outro reside na frieza emocional dessa espécie de discurso e do modo como, através dele, aquele que fala contorna-se, deixando de dizer sobre si (e de estar em si). Essa postura não poderia deixar de causar repulsa àquele que ouve e que esperava ser seduzido e não ensinado. O âmbito privado, no qual a retórica genérica, racional e abstrata fenece, é o lugar sagrado em que o sentimento habita.
Tais são as impressões que tive, desse homem pedante porque inseguro e temente de rejeição. Quanto à vida, dela se afasta continuamente à medida que a morte se aproxima sempre, e na medida em que é incapaz de ater-se ao real. Incapaz de fundir-se ao concreto, como competente amante, poderia ao menos com ele chocar-se, ainda que desse atrevimento adviesse dor, trauma, ferida aberta.

domingo, 6 de novembro de 2011

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Retratos Urbanos

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Na banca de revistas.
Um homem aponta para uma obra de Kafka (Metamorfose) e grita:
___ Do caralho! (sai de cena)
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Numa igreja cheia de turistas.
Guia turistico: para mim viajar é aprender.
Guiado turistico: para mim também ! (balançando a cabecinha de baixo para cima, de cima para baixo)
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No balcão da drogaria, pagando a conta.
Atendente: a senhora QUER ajudar as criancinhas com câncer? (olhar incisivo enquanto aponta uma revista em cima do balcão). É só dois e noventa e nove.
Cliente: não, valeu.

Simião sob os cuidados de Laura

Eu tenho uma razoável noção Laura, de que sou um desgraçado. Passei a vida sendo incapaz de atravessar o olhar de desprezo da minha mãe e suas palavras, o modo como me resumia, ironicamente (logo soube), espírito sensível. Tampouco esqueci seu riso velado diante de cada frustração amorosa minha, que ela descobria secretamente, quando despertava, no meio da noite, para meus passos alternados no escuro. Ela ouvia meus soluços engasgados, incontidos e o silêncio que eu fazia questão de espalhar na manhã seguinte por toda casa, enchendo-a de austeridade. Meus atos severos, minha mãe os decifrava, um a um, transformando-os em sombras. Quando ela por fim morreu, achei que fosse me livrar delas. Ao contrário, se agravaram, agora rodeadas de culpas e outras tristezas de mesma natureza. Não. Você deve saber que não a condeno. Eu, apenas eu, é que sou um torpe humilhado, um parvo. Pobre de minha mãe, eu a maltratei em vão. Você pergunta de mulheres. Nunca pude ter uma que prestasse minimamente, digo, que fosse bonita. As putas não contam, elas  me deprimem a ponto de não mais querê-las. Porque mostram que sou incapaz com as outras, as santas. Nunca fui capaz de fazer uma santa gozar Laura.
Inteligência até tenho, mas tenho também indolência, que para piorar, me estimula a vícios. Não fosse isso poderia ter tido certa riqueza, ou ainda, quem sabe, sido doutor respeitado, escrito livro, construído edifícios, casas, grandes obras, viadutos. Teria produzido, quem sabe.
É. Nem preciso dizer o quanto me custou chegar até aqui: conclusões. Dizia a mim mesmo que era homem nascido para questões maiores, um artista de espírito sensível, afinal. Repetia minha mãe, repetia. E a repito, confesso, para alguns até hoje, mas de forma consciente, e somente àqueles poucos que ainda tento conquistar, quando por vezes, um resquício de pudor me sobra. Com você é diferente Laura. É minha enfermeira e a pago bem, o suficiente para que ouça minhas verdades vulgares - toda verdade é vulgar?. E a mais vulgar de todas elas, que é: desisti de ter dinheiro, liberdade, esposa, filhos e dignidade. Desisti de uma vida que não fosse esta mediocridade pelo mesmo motivo que deixo minha louça por lavar: preguiça. Repugno-a?

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A Publicação

Um funcionário do Estado aguardava a publicação, na imprensa oficial, das suas férias. Deveria ter saído no diário da Sexta porque elas se iniciariam na Segunda. Assim, a primeira coisa que ele fez pela manhã foi ligar o computador para procurá-la. Nada constava. Por isso que, no final da tarde, quando seus colegas lhe deram votos cordiais (pouca chuva, mulheres e até, quem sabe, uma namorada - afinal estava na hora), respondeu a todos com um sorriso atravessado, de gente ressabiada.
Passou o final de semana tentando não pensar muito no assunto, dizendo para si mesmo que na Segunda a publicação estaria ali sem falta, quando então poderia viajar tranqüilo para o Rio de Janeiro. Mas a Segunda veio sem portaria alguma. Decidiu então retornar ao trabalho, ainda que previsse a reprovação de todos: não esquenta cara, relaxa, sua portaria vai sair com data retroativa, deixa de ser noiado. Ou: que tu faz aqui meu irmão? .
Mas este funcionário era do tipo que só acredita vendo, um São Tomé.  Cauteloso, preferiu incorrer no erro de trabalhar nas férias a surpreender-se posteriormente com tenebrosos descontos no holerite. Ou de repente até coisa pior, como o caso da senhora dos contratos.  A pobre coitada, crendo estar de férias, viajou para o Caribe retornando só no trigésimo primeiro dia, quando recebeu a notícia de que, sua portaria nunca fora publicada. No entanto, a de exoneração já estava ali quente, e não só isso, voando de boca em boca, através dos sóbrios corredores do antigo prédio do governo. Exonerada por faltas! Ela que em vinte anos de carreira pública não possuía sequer uma ausência injustificada no seu currículo. Não, era arriscado demais. Este funcionário sabia e temia a máxima administração burocrática: o que não está no papel, não existe no mundo. Por isso ficaria ali, ainda que não trabalhasse de fato, fazendo-se presente e o principal: batendo o cartão nos estritos horários de entrada e saída. Até seu chefe foi ter com ele, se explicar, dizendo que tudo estava arranjado, que aquilo era uma mera formalidade desimportante. E não é que não acreditasse naquelas palavras, mas na prática, de nada valiam. 
Sua espera angustiada, no entanto, foi breve. Pois já no terceiro dia, encontrou seu nome publicado no Diário Oficial, bem ali, na página 30 , seção 8 do caderno II:
  
 Portaria 39/11

Autoriza, nos termos do art 89, I, item 2 da LC 29/69, que Este Funcionário, matrícula 89073, coma o cu do Senhor Diretor de Assuntos Gerais, no período de 11-10-99 a 05-11-99, sem prejuízo de seu vencimento e demais benefícios decorrentes da sua função gratificada e desde que não haja quaisquer ônus ao Estado
  
Saiu! Finalmente essa merda saiu! gritou a todos enquanto arrumava a mochila para ir embora. Agora eu vou! 
Vá em paz querido! Mas vá logo que já se passaram três dias. E aproveite muito.

Isadora entrecortada

Lá, sentada numa banqueta, num bar escuro, Isadora suspira de cansaço.  Feixes de luzes multicores recortam o ar, fazem retratos revelando rostos dantes perdidos no breu: risos falsos, maquiagens borradas, olhares fatais.  Na mão, um drinque colorido: água parada por lesa que Isadora esta, de tanto beber já não consegue mais. Do seu lado uma mulher fala de substâncias da vida: todas suas verdades maiores, ignoradas. Depois sobre paragens além mar, as bonitezas que o de longe proporciona, sempre mais vastas. De tanto e tanto que se diz pouco são essências aproveitáveis. Suas palavras voam o espaço e se perdem nele, letras esparsas no ar - redemoinhos. Isadora se dispersa e fixa o olhar no lóbulo daquela orelha, donde pende uma pedra muito lisa, escorregadia, purpúrea. O adorno realiza movimentos regulares de relógio, marca o tempo da música que se espalha no salão.  Detém por minutos sua atenção ali, na pedra brilhante e nua que existe fixa, sem alma. Rocha sólida cuja dança é o vai-vem, vem-vai cadenciado. Depois volta-se para o pescoço, fita-o branco, redondo, este que devia ser macio como uma almofada nova. Quer tocá-lo com a boca, sentir sua textura quente. Impulso inconteste que a natureza cria para que a vida se logre arrependida, de saudade basta, às vezes. A mulher puxa a banqueta e se aproxima para que Isadora a ouça melhor. Ela aproveita e se aproxima também, curva a cabeça sob o pretexto de escutá-la. Agora que está bem próxima do seu objeto de desejo Isadora adverte-se, teme. Raciocina. Avança centímetros em seguida atrasa. Titubeia infinitamente num impasse repleto de quês maiores: Que? e Quê? os Quês?. Isadora no meio do caminho, paralisada feito pedra que medusa faz. Isadora entende e não entende. Permanece.


terça-feira, 4 de outubro de 2011


Pichação bem humorada na  Domingos de Moraes - Vila Mariana

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O cardápio de Guilherme - ouvindo conversa alheia

O ônibus percorre a marginal Tietê. Dentro dele um celular toca, atende um homem de boné, camisa azul, jaqueta: paris? Não, a paris é bem gostosa mas é feia. Pode ser a mediterrânea. Quero que você tire uma foto bem grande dela e coloque perto da porta de entrada. A gueixa é super fotogênica, ela também. A espanhola? Ah..não sei cara , para mim parecia que tinha melhores, é comunzona né, queria algo mais excêntrico. Isso, oriental, russa, ou turca talvez...veja o que dá. O Guilherme quer variedade, cor. 
Risoto de camarão, frutos do mar, a salada não precisa de muitas folhas. Não, melhor filé mignon. Tá ok, para essa semana ainda. Certo. (desliga)

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Sobre o amor e seu trabalho silencioso

Eu sei, Rilke aconselha os jovens poetas, que não falem de amor já que a chance do escorregão é grande. Mas a realidade é que não há outra opção então arrisca-se. Que seja.  
Há uma música em um álbum (Vagarosa) da cantora Céu que tem nome bonito: “Sobre o amor e seu trabalho silencioso”. Aqui me fio apenas no título por este alcançar força própria, autônoma. Ele diz tanto porque é realmente assim: de um ato inocente, despretensioso, por vezes lúdico, brota o tal, ainda pequenino, de alguma profundeza densa e misteriosa do ser. Lá ele se alimenta de algo sem nome e cresce invisível, se movimenta ligeiro, serpenteando entranhas, ainda que discreto; insistente e perturbador. Uma cria estranha. De repente, por gigantesco que está, irrompe. Extravasa. Só restando a quem o abriga dar conta do recado, desse tamanho tanto. Coisa de gente grande. Um outro recado de poeta é: vivê-lo é razão para que se safe de uma existência vulgar. Consolo. 

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Pisco e Isabel Allende


Recebi um jornalzinho local, do estilo “Metro”, para ler no vôo de quarenta minutos da Star Peru, que separa as cidades de Puerto Maldonado e Cusco.  Quase nada me chamou atenção nele a não ser uma manchete popularesca sobre Isabel Allende: “Escritora chilena mente!” .  Ah? Fui com sede ao pote em busca de uma baita fofoca literária e nada. A indignação  residia numa declaração banal sobre a origem da tradicional bebida peruana, o pisco, que segundo ela na realidade é chilena. Revolta da imprensa peruana e de quem vive lá do turismo gastronômico. Tanto faz, pensei. No entanto, a noticia teve o mérito de aguçar minha curiosidade acerca desta consagrada escritora, e a lembrança de que nunca havia lido nenhuma de suas obras. 
Aproveitei uma manhã livre, quando meus companheiros de viagem ainda dormiam no hotel, para visitar uma livraria na bela cidade inca . Surpreendi com o fato dela conter muito mais de Paulo Coelho que de  Mario Vargas Llosa. Depois veio a dica, é porque Cusco é uma cidade mística. Ah, boa.
Mas voltando a Allende, encontrei lá uma edição espanhola de bolso: da Debolsillo (foto acima). Barata e bonita. Escolhi “De amor y de sombra”, por ser uma das suas obras mais famosas, pela sua representatividade. Além do título bonito, atraente.
Agora impressões: Isabel Allende, como o pisco, tem origem dupla: nascida em Lima, naturalizada chilena. Sua obra, doce como a bebida, como ela também nos aparta da realidade somando pouco. Distrai, diverte e basta. Leitura fácil de férias descompromissada. Isso porque a caracterização dos personagens fica rasa como são rasos e fáceis os clichês: a heroína jornalista, forte e doce, de intenções nobres,  apaixonada pelo bom, justo e pobre fotógrafo comunista. O militar homofóbico, atlético e tradicional. O cabelereiro gay , elegante e rico. A dicotomia óbvia entre ditadura e comunismo - bem e mal. De repente um poema de Neruda aparece- era o que faltava. Óbvio... Assim como “A Casa dos Espíritos”, possui bons ingredientes para filme de sucesso. Mas não muito mais que isso: entretenimento. Caso não seja esse estritamente o foco do leitor e se, como agravante, tiver pouco tempo não arrisque: fique com os gigantes: Dostoiévski, Guimarães Rosa, Thomas Mann. E afins.


quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Por muito tempo achei que desejo fossem pernas e bocas e seios.
Fossem - tão somente - tais chamas, tais desvelos. 
Glamoures do amor intenso.
Hoje vejo que desejo é um procurar qualquer. Um ensejo.
Que nos permita levantar da cama quando o despertador toca.
E que cada diferente desejo é um só desejo: O mesmo.
E que nenhuma vontade é banal.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011



Revi neste final de semana o programa “Ensaio” com Elis Regina. As tomadas em close do seu rosto expressivo, das suas mãos inquietas, a bela fotografia e o formato da gravação – onde o entrevistador não aparece – contribuem para a comunicação não só de informações mas também de sentimentos. Seus depoimentos verdadeiros, desprendidos de pretensões vaidosas (parece até que ela esquece que está sendo filmada) e suas interpretações ora melancólicas, ora alegres, ao sabor das lembranças e estados emocionais a que é levada no andar da entrevista, fazem com que tudo fique muito bonito e comovente.  
Selecionei este trecho em que Elis alude ao amigo Cyro Monteiro, sambista carioca, falecido no mesmo ano da gravação do programa, 1973.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Setembro

 Uma daquelas coisas bobas e simples que mais gosto de fazer é ficar do alto de uma sacada bebericando algo delicioso e ouvindo música enquanto olho São Paulo de cima, especialmente à noite. Olhar sua imensidão de luzes, seus montes de prédios (onde algumas cabecinhas também olham) e o andar frenético dos automóveis, das pessoas, feito formiguinhas, indo, passando, não só me acalma como deleita. Em contraponto à apatia provinciana, a vastidão complexa da capital finaliza suas noites fazendo-nos sempre uma bela promessa: a de um novo dia para o dia seguinte. Esperança e liberdade - é o que a capital fornece. E vontade de ser vário, de ser grande, de ser mais de um em um só. Um não contentar-se, mas contente (desculpe furtar essa de Camões, mas a ocasião merece). De estar para sempre em movimento, a espelho dela. À Paulicéia torno, eu que amar, senão tal desvario, não posso.   

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Ansiedade. É o vazio do agora mais o medo ressabiado do porvir. É aquilo que se quer que aconteça e fique para sempre acontecido. E o que é mais: a luta inglória de um contra o tempo, daquele que, a passos largos, vence sua cadente marcha, em desafino. Quando se avança través, num além de muito ir, por veredas imaginárias (semelhantes a desenhos em nuvens que vento faz, desfaz). Corrida cujo trunfo ao vencedor não passa de um: longa e palpitante espera, pelos que, em uníssono, com a banda vêm. Fica apartado, insone de rubros olhos por um abrir sem tréguas, no aguardo, um homem. 


quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O Primeiro Jazz Man



Esta é a primeira parte do documentário de Ken Burns. Para matar a curiosidade das origens do jazz: Buddy Bolden e seu "big four beat".  

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Justiça

"O que a lei
não redime
é o crime
com defeito.

Se bem-feito
ou bonito,
o delito
talvez rime
com direito.

Se perfeito,
ora, o crime
é a lei. "  
               
                                              Eugênio Bucci



segunda-feira, 22 de agosto de 2011


“Coração bruto batente, por debaixo de tudo"   (J.G.R)
                                                           
Há uma passagem admiravelmente triste e bela em “Grande Sertão: Veredas” em que os jagunços do bando de Riobaldo, o narrador e personagem principal da história, sofrem terrivelmente porque seus cavalos estão sendo covardemente atacados pelos inimigos.
Eis os dolorosos trechos:

“O senhor escutar e saber – os cavalos em sangue e espuma vermelha, esbarrando uns nos outros, para morrer e não morrer, e o rinchar era um choro alargado, despregado, uma voz deles, que levantava os couros, mesmo uma voz de coisas da gente: os cavalos estavam sofrendo com urgência, eles não entendiam a dôr também. Antes estavam perguntando por piedade.”

“Iam caindo, quase todos, e todos; agora, os de tardar no morrer, rinchavam de dôr – o que era um gemido alto, roncado, de uns como se estivessem falando, de outros zunido estrito nos dentes, ou saído com custo, aquele rincho não respirava, o bicho largando as forças, vinha de apertos, de sufocados.”

“O Fafafa chorava. O João Vaqueiro chorava. Como a gente toda tirava lágrimas. Não se podia ter mão naquela malvadez...”

O que o maravilhoso escritor nos impele a sentir pelos animais, através do lirismo e do abuso da prosopopéia?

Compaixão. Lembrando-nos de que não são seres autômatos. Óbvio? Sim. Mas nos esquecemos disso todos os dias quando os vemos embutidos em embalagens coloridas no supermercado. Por que isso ocorre? Falta ao homem moderno um sentimento ético mínimo no qual o animal que lhe serve de alimento esteja incluído. Se a revolução do capital nos proporcionou inúmeros ganhos – os quais não vêm ao caso apontar – trouxe também como perda – e como maior disfunção - a dessacralização da natureza. O homem passou a figurar como ser superior no céu e na terra, distanciou-se emocionalmente do seu meio-ambiente. Daí a transformação dos animais em meros objetos de consumo, produtos e matérias-primas industriais.
Como atuar no mundo de modo minimizar tal problemática? E que ética seria essa, capaz de nos reaproximar, sentimentalmente, do animal coisificado, erguendo-o novamente ao altar da vida? São questões difíceis de serem respondidas. Tampouco de serem negligenciadas. O gênio do grande autor nos desperta do langor cotidiano para a questão urgente. Quem é responsável sabe.


quarta-feira, 17 de agosto de 2011




segunda-feira, 15 de agosto de 2011

The Ska Ep


Embora de 2008, descobri recentemente que Amy Winehouse gravou além dos álbuns "Frank" e o famosíssimo "Back to Black", esse EP com 4 clássicos do ska. É leve , dançante e adoravelmente bom de se ouvir. Ponha para tocar enquanto você descasca uma cebola, arruma a bagunça chata do quarto ou toma cerveja com aquela pessoa que você adora (ela merece!) . ALTAMENTE recomendado.
 

quinta-feira, 11 de agosto de 2011



Encontrei Susan Tedeschi e Derek Trucks há dois anos, vagando pela internet. À toa cliquei em um vídeo relacionado no youtube e lá estavam os dois em um ensolarado festival de blues tocando “little by little” (Junior Wells)- aqui .Desde então acumulei alguns dos seus álbuns. Da banda de Trucks destaco o delicioso “Songlines” e de Susan “Back to the River”. Ainda que ambos tenham muito em comum: a guitarra, o blues, e suas próprias vidas (eles são casados), as suas - já longas - carreiras seguiram em separado. Ao menos até este ano, quando o casal resolveu se unir também no trabalho e formar a “Tedeschi Trucks Band” , banda responsável pelo novo álbum – Revelator- página oficial.
Ainda não provei a mistura, mas a suspeita é de que o caldo não entornará. De todo jeito fica a dica para quem gosta de blues (e de repente até para quem não gosta tanto). E não se preocupe: intermináveis e monótonos solos de guitarra não deverão acontecer.


quarta-feira, 10 de agosto de 2011

A História de Meleléia

No desterro Nhá asseverou: faltou-lhe administrar seus vastos quereres. Por isso Meleléia também quis o sol. Atingiu o apogeu e queimou-se feito Ícaro. Dos deuses a lição de humildade. Meleléia quis muito ser e não sendo como o sol queimou-se dele, da sua quentura. Restou a cantiga do povo do vilarejo, que sem ninguém dizer aprende, só se vendo basta.

Essa mulher foi cordata
Foi boa, estouvada
Fincada de brio

Agora é bravata
no curso da estrada
de farto extravio

Meleléia coitada
Que fora cordata
Em tempo bravio

Agora é maçada
De parca ossada
Que nem um pavio

Fizeram a Meleléia prece, arredondaram trato: Meleléia voltasse, dariam pato, gazela e corça para assar em festa. Noite e dia vem e passa, todo burgo na janela, a vislumbrar de sombra e vulto, em sentinela.
Mas só quinquilharia vem: vendedor de panela velha, burro de carga sofredor e cão de sarna em treva. Meleléia embaça. Esperança estremece a quem carece de santo.
Sofre o burgo todo. E se repete o canto.



Todo esse meu sonho, meu Amor
E quem quer que ele o siga
E quem quer que ele o tanja
Que se mostre todo êxtase
Que o vele e não o míngüe

Que o zele e mais: aninhe
Feito ave a esperança
Feito fé em Deus a crença
Que ao homem tudo alcança

domingo, 7 de agosto de 2011

Almas Frívolas

 
Tenho internet, ipod, máquina fotográfica, notebook, roupa suficiente para me vestir por semanas, não poupo com viagens e livros. Ainda assim, algumas pessoas enxergam certa austeridade no meu estilo de vida (seja por não ter carro, televisão ou um guarda-roupa imenso). Nesses momentos, paro para refletir se algo me falta, se realmente me acostumei com pouco e no fim , a conclusão é sempre a mesma: a de que tenho até excesso de coisas.  Para que tanto?
O que ocorre , a meu ver, é um excesso frívolo na nossa sociedade. Vigora o valor - deturpado- de que precisamos de muitos e muitos objetos de consumo para ficarmos bem . O cotidiano me mostra ( e banaliza) situações que consternam: pessoas desesperadas por uma espécie caríssima de celular ou por um tablet (muitas vezes de quem nem gosta tanto de ler).  
Nessas ocasiões, de constatação desses excessos frívolos, até simpatizo com os monges e suas vidas de clausura e sacrifício. Fico imaginando o desprezo que devem sentir da fútil e infantil “bourgeoisie”. Medrosa de perder suas coisinhas, fraca o bastante para ser incapaz de silenciar o demônio que surge quando estamos sós. Da sua ética e moral tacanhas, seus valores frágeis. Da sua crença ingênua na ciência e na imprensa, essas inabaláveis fontes “da verdade”. Da cega histeria materialista , completamente absurda, capaz de abalar milhares em fila por causa de uma bugiganga eletrônica qualquer. Da sua assustadora volubilidade de hábitos e costumes, ao sabor dos ventos, da voga (vaga voga). Dos seus ídolos “big brothers”. Da ausência do sagrado em suas vidas. Do seu forçado descaso frente àquilo que realmente interessa, que é mais difícil porém compensador, enfim, ao que de fato tange a humanidade: a natureza, a morte, a política, o desejo, o amor, a arte, o nascer, o renascer – a ressurreição- , a fraternidade, o trabalho, deus (mas não como o papai do céu, por favor). Só querem é “desrefletir” o máximo que podem para matar o tempo (são tantas as ferramentas: TV, internet, vídeo-game, prozac, cachaça, compras...) como adolescentes pervertidos. Que mais achariam os monges dessa esplêndida disneylândia, repleta de mickeys e patetas, senão como sendo obra do coisa-ruim, do capiroto? De quem mais? Haja reza brava para que se salvem.

PS ; Para perder um pouco da visão distorcida que a cultura “bourgeois” incutiu em todos nós, ao menos  acerca da clausura monástica e seu gosto frugal, vale a pena ver o filme do diretor francês Xavier Beauvois, “Dos Homens e dos Deuses" (cena acima).


quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Pato Real


 Conta Jonathan Franzem, na sua obra memorialista, “The Discomfort Zone”, que irrompeu em lágrimas ao visar um casal de patos reais em uma lagoa no Central Park. A cena dramática é explicada por uma frustração amorosa que o escritor havia acabado de enfrentar. Quem já viu a docilidade dessas aves juntas é capaz de entender o desconforto que ele deve ter sentido, ao deparar naquela imagem, ele mesmo e seu par ausente.
A primeira vez que eu vi um casal desses patos – nadando em uma lagoa em Potsdam – soube que passavam toda a vida juntos. Depois, pesquisando melhor, descobri que não é bem assim: o macho acompanha a fêmea até que ela ponha seus ovos, quando então, tem de cuidar dos filhotes sozinha. Para os amantes tanto faz. Tal fato não detona a força simbólica que, de repente, a natureza proporciona ao homem citadino que caminha pelo parque. A beleza do nado acompanhado dessas aves, o cuidado para com suas trajetórias, para que convirjam, é poderoso o suficiente para servir de temerário espelho a quem as vislumbra.

domingo, 24 de julho de 2011

Lonjuras e Agruras

Longe. Qual a pior coisa de se estar longe? É a saudade do que está longe? Não é a pior coisa. Pior mesmo é o esquecimento daqueles de lá, que se fiam nos afazeres dos seus próprios lares. É tornar-se simplesmente uma memória longínqua daqueles que antes eram seus e você deles. Sem que se perceba, o espaço aliado ao tempo (poderosos promotores do andamento de todas as coisas, e também do sentimento) devasta os vínculos, como as cáries que corroem os dentes, até fazê-los negros de doença.
Ocorre que, em um dia qualquer, como muitos de outros, acorda-se, e no lampejo de um olho que abre e fecha, encontra-se o peregrino (diz-se daquele que migra e não faz para si um lar) numa pradaria circular e infinita, de horizonte vasto e inatingível. Ele dá passos, jamais vacilantes, que o levam a lugar nenhum, já que a paragens indistinguíveis, pois alternadamente iguais. Estranhamente inexiste ali uma direção já que “o desvio” é uma possibilidade absurda, ignorada. Tal é a liberdade? A ausência da possibilidade de desvio? Também assim é o tédio e o tanto faz? E desses estados todos, a solidão uma condicionante? Desdita solidão, benfazeja liberdade. Nem anjo nem demônio, mas pradaria infinita e uma ovelha – animal coletivo – desgarrada.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

quarta-feira, 13 de julho de 2011


Baubauhaus. Esse é o nome de uma linda, diversificada e colorida galeria virtual. Ela reúne ilustrações, fotografias, tipografias dos mais variados autores (basta clicar nos pôsteres para encontra-los). A propósito, o autor da arte acima é Andrei Ograda.
Os organizadores do site, dois romenos, Stefan Lucut e Andrei Don,  explicam o  objetivo do trabalho: promover inspiração e diversão.  Objetivo alcançado!
Segue o link que tanto vale a pena: www.baubauhaus.com

A Montanha Mágica - Anotações


Nos arredores da página 800

 Os personagens da Montanha Mágica não falam  apenas por si. Eles extrapolam  os  limites da narrativa a fim de representar, alegoricamente, a história do pensamento ocidental.  Não é por acaso que o engenheiro é alemão, o humanista italiano e a grande personalidade endinheirada e pagã holandesa. Cada personagem é a contribuição cultural de cada Nação para o universo das idéias ocidentais (até meados do século XX).  Por isso mil páginas, que depois dessa conclusão, poderia até se pensar que não são tantas assim.  

A figura estranha, a grande personalidade holandesa Peeperkorn, aparece somente no final do romance quando participa, não dialeticamente, mas somente através da sua presença grandiosa e rude,  de uma das inúmeras, intermináveis e insolúveis contendas de Naphta , o jesuíta , e Setembrinni , o humanista. Por algum motivo misterioso, a presença da grande personalidade, embora idiota, emascula o debate dos pedagogos, mostra sua futilidade. Os gestos do holandês são sensuais , lembrando uma dança pagã. Hans Castorp observa então, e pela primeira vez,  a  incoerência do discurso dos ilustrados em relação a suas próprias vidas. O humanista italiano em certo momento defende a volúpia, mas a mobília do sótão em que vive é de gosto ascético. O jesuíta fala do amor reliogioso, porém do seu corpo e dos seus gestos não há traços de amor. De modo distinto se passa com a realeza grosseira do holandês. Pois se nele encontra-se ambigüidades, estas são de outra natureza, são “positivas”. Sua personalidade pode até carecer do caráter educador daqueles demagogos, no entanto, isso não impede que venha a ser uma oportunidade para quem busca formação. Como? Um mistério que o herói tem dificuldade em explicar, mas que é sempre atribuído à sua personalidade majestosa: “um zero majestoso”. Assim é descrito Mynheer Peeperkorn. Um sibarita*. E quando a ocasião traz à tona as coisas práticas da vida, a realidade, os dois intelectuais vaidosos tornam-se insignificantes. É o momento em que prepondera o ignorante holandês com seu entendimento tácito sobre as coisas da vida. Ele comanda, ordena e aglomera  todo tipo de gente em torno de si. Além disso, torna-se um ídolo.

Sobre o italiano humanista um fato interessante: ele possui repulsa por tudo o que vem do oriente, e é uma repulsa não de desprezo, mas que se relaciona com o medo pelo que é desconhecido. Representaria assim a aversão que o ocidente tem pelo oriente?  E não seria assim até hoje, a despeito do processo de globalização (pois esse mundo desconhecido não é suprido simplesmente pela informação) ? Pois quanto incomodo não causa uma mulher que caminha de burca ou de niqab em Paris?


* descubro pelo salvador Houaiss (grande dicionário) que sibarita é aquele dado a indolência e voluptuosidade. Uma referência ao povo Síbaris (?), que tendo sido muito rico (como o holandês da história), era conhecido por regalar-se fartamente, nos prazeres sensuais da carne.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

O Golaço de Erika



Pela primeira vez tenho acompanhado o mundial feminino de futebol. E depois do jogo de hoje do Brasil contra a Guiné Equatorial não consigo imaginar nenhuma razão plausível para a competição ser tão negligenciada. Mesmo o futebol sendo o esporte preferido dos brasileiros, não há uma fitinha verde amarela tremulando nas ruas, uma alusão qualquer à competição. No trabalho, nenhum comentário, inclusive daqueles que amam o esporte. Bem na hora do jogo, a televisão ligada mas em um programa qualquer que ninguém nem está muito interessado. Como pode? Não há respostas plausíveis. Agora, plausibilidade para a chapelada da Erika e seu chute certeiro com a bola ainda no ar sobra. Para uns espanta, para outros deleita. De  todo jeito prova a qualidade do futebol das brasileiras. E ainda, que futebol bonito é maravilhoso de se ver sempre, seja na pedalada de um Robinho, seja na de uma Marta.

Sotaques

No último ano, tive oportunidade de conviver com pessoas de diversos cantos do  país: gaúchos, paranaenses, catarinenses, sergipanos, pernambucanos, cearenses, acreanos, cariocas, mineiros, mato-grossenses, paraenses e por aí vai...como o Brasil é grande. É sim senhor! E de toda a troca cultural obtida, uma das mais interessantes foi a da linguagem. Eu como paulista egocêntrica que sou (agora um pouco menos) só fui perceber o impacto de se ter sotaque quando mudei de estado e vim para as bandas do norte. Não tardou para tomar consciência da minha regionalidade. Pois o primeiro acreano a que fui apresentada no trabalho já me despertou para ela: “boa tarrrde” respondeu ele, entre risonho e malicioso. Foi seu primeiro golpe, de muitos outros que adviriam, no meu simpático erre retroflexo. Bem o meu que é tão discreto (embora não tão discreto a ponto de um descendente de cearenses não reconhecer). Pois é. Por sorte naquele momento havia um goiano e uma mato-grossense recém chegados para me defender. Ouvi-los de repente foi um reconforto, um aconchego de mãe, eu e minha linguagem sentimo-nos em casa. Sim, porque o sotaque caipira do interior de São Paulo se confunde com o do norte do Paraná e também com o de boa parte do centro –oeste (não contemos com o distrito federal, lá é um caso a parte).
Como era de se esperar, o ambiente multicultural promoveu saudáveis disputas pelo melhor sotaque. Obviamente, defendi este que faz parte de mim bravamente, do modo que merece. Fiz jus à sua beleza. No entanto, tais ataques também não me impediram de me encantar com a diversidade das outras falas, suas sonoridades distintas,  suas expressões. Afinal, como não achar graça no jeito gaucho de se referir às meninas, suas “gurias”. Ou no modo paranaense de dizer suas crianças, seus “piás” ou “piazinhos”.  Ainda, como não sorrir diante da expressão simpática de uma mineira que veio me perguntar sobre a situação de um caminhão, se o mesmo já havia cruzado a fronteira: “uai, mas o trem ainda não passou?”
Também me diverti com a visita de um amigo de Belém do Pará, que baixou no Acre cheio de “esses” carregados de “xis”, lembrando muito o carioquês. Ao que ele se defendeu: “Não. São os cariocas que falam como a gente”, indignado.
Outra recente descoberta foi a fala catarinense e a naturalidade perfeita com que se conjuga a segunda pessoa do singular: “tu fizeste isso”, “tu falaste que não era assim”. Quando posto na forma escrita pode perder um pouco a graça, mas se transformado em som é lindo, encantador. Entretanto, frisa-se que o encanto se dá pela naturalidade com que é dito, por já se encontrar incorporado na linguagem falada. Coloco eu a segunda pessoa do singular na minha fala e o resultado será catastrófico, pedante que só. Até então, só havia presenciado o tu da boca de amigos cariocas ou gaúchos e sempre fazendo par com a terceira pessoa: “tu fez”.
Quanto aos nordestinos, deles uma boa lição. A de que no nordeste, todos cantam, mas cantam cada um a seu modo. Nada que um ouvido atento e respeitoso não possa distinguir com o tempo. Para o ouvido paulista, por exemplo, a impressão será de que o pernambucano fala de um modo mais “carregado” e cantado que o cearense. A pouca vivência nos faz confundir tudo. E se eles se “avexam”, se ficam “aperreados” com isso , têm mais é razão. Porque é no mínimo vulgar igualar duas culturas por desconhecê-las, especialmente quando elas estão no mesmo país que o nosso. Tratando-se então da língua portuguesa, essa pela qual nos fazemos todos os dias humanos, a perda é tanto pior.

domingo, 19 de junho de 2011

“Algumas coisas estão ficando muito claras. A construção da frase, tão literária, a construção da frase longa; o Facebook e o Twitter estão trabalhando enormemente para a frase curta. As pessoas estão começando a falar com frases curtas. Neste sentido, estão se afastando da literatura. Isto é absolutamente alarmante. Não gosto deste tipo de denúncia porque sempre prefiro incorporar elementos menos dramáticos. Mas é certo que está se falando pior, pois perde-se a complexidade da construção das frases. Há muito mais gente que escreve agora, mas só no Facebook e Twitter. Eu sou um entusiasta da internet, estou na internet todos os dias mas está se perdendo a construção complexa da realidade. Se há frases muito curtas, se fala com este tipo de frases. Há uma perda dramática da única coisa que nós, humanos, temos:  a linguagem. Não se trata da linguagem visual como muitos acreditam, mas da linguagem falada que se usa para comunicar emoções, esta coisa primordial que está se perdendo."

Enrique Vila-Matas - em entrevista para o Entrelinhas 

quinta-feira, 16 de junho de 2011

A Celebração dos Pequenos

Fui convidada, com tudo pago, para a celebração da ausência de um outro. Celebra-se a falta? Não celebra-se sem que seja de puro mau gosto. Sem que seja porca por fora, oca por dentro. Pouco importa o caráter ou natureza do inimigo. No jantar da mesquinharia, da alegria pequena, prevalece a corja e os glutões. Prevalece o cenário medieval grotesco, da multidão em regozijo frente à guilhotina. Claro, odeia-se. Mas intimamente, solitário e firme. À noite, antes de dormir, numa reflexão, num sorriso oculto. Como um herói que derrota seu inimigo respeitando-o silenciosamente.  Do folguedo para o sofrimento, da zombaria da dor, ninguém se salva.

Renaud Garcia Fons - Aqa jan



"I had a dream about a bass—half Gypsy, half Mediterranean—that traveled from India to Andalusia, passing by the Mediterranean, north or south. Yet the bass is neither a traditional nor an oriental instrument. But its range of sonorities and the way it is played upon—both pizzicato and con arco—seem to make it feel comfortable in the neighborhood of certain instruments at home in the oriental world..."  Renaud Garcia Fons 

De: www.allaboutjazz.com

quarta-feira, 15 de junho de 2011

A Vaidade é Brega

Certa feita, o filósofo Luis Felipe Pondé finalizou uma das suas colunas – no jornal "A Folha de São Paulo"- dizendo que a vaidade era brega.  Gostei tanto da qualificação, embora tenha soado um pouco estranha de início, que desde então, quando vejo alguém pavoneando por ai me lembro dela. E a breguice cabe tão bem à vaidade por ambas serem dignas de chacota. Quando a vestimos nos tornamos seres risíveis, patéticos, colocamos a máscara tola de um bobo da corte e saímos à rua. Cabe esclarecer, porém, que não me refiro precisamente àquela vaidade dos atributos físicos, dos perfumes e das maquiagens. Nada a ver com o jogo sexual de corpos desejosos e desejados. Tampouco se relaciona a uma  auto – estima favorável  já que esta vaidade não passa de umas das muitas medidas desesperadas que um ego suplicante toma para sustentar-se.  Explico-me, portanto.
Vaidade aqui é o valor extremado – desproporcional- que um ser faz de si e de tudo o que lhe diz respeito: do que fala, veste, come, vê; é a certeza de que ele está sendo atentamente observado, de que sua opinião importa muito a muita gente e de que mobilizações advirão a cada ação ou omissão proporcionada. Sua condição patética se dá por desconhecer sua própria pequenez, pela falta de humildade que é resultado senão de uma ignorância profunda do tempo e espaço em que vive. É exatamente aquele tipo que todo mundo já deve ter enfrentado no trabalho ou em uma mesa de bar falando histericamente de si, condicionando seu próprio valor ao status que seu trabalho, mulher, marido, carro, casa ou viagem de férias possui no mercado social.  É o vaidoso que gasta tempo e energia preciosos para que seja visto pela massa disforme (a qual ele mal vê e pela qual nada sente). Não é difícil perceber que tudo isso leva a uma terrível frustração na medida em que  a postura do vaidoso, embora ativa, não garante, ou pior, atrapalha relações afetivas profundas.  
Vale ainda observar que a direção dos nossos esforços vaidosos pode nos sinalizar o quão importante eles são: se a um individuo específico; há de serem valiosos pois uma pessoa é capaz de amar e ser amada nos trazendo imensuráveis recompensas emocionais.  Se a um grupo social; não. Neste caso a vaidade poderá ser um verdadeiro pecado capital.

domingo, 12 de junho de 2011

segunda-feira, 9 de maio de 2011

sábado, 30 de abril de 2011


" A mi, no el saber (que aún no sé) solo el desear saber me ha costado gran trabajo."

Sóror Juana Inés de la Cruz


sexta-feira, 29 de abril de 2011

Pequena reflexão sobre o tempo


O tempo daquele que espera cresce no presente e morre no passado. No agora ele existe gigantesco para depois, no futuro, quando relembrado, inexistir, por nele não ter ocorrido impressões marcantes. Nessas ocasiões fica fácil perceber que o tempo só existe no presente. Quando nos referimos a um tempo que se foi, nos referimos somente a uma memória. Isso explica o senso comum de que a pessoa que foi mais ativa aproveitou melhor a vida. Como se o tempo transcorrido pudesse ser recolhido através das suas memórias e guardado numa caixinha no fundo do armário. Essa é a promessa de uma velhice mais livre de amarguras e arrependimentos. Uma ilusão na verdade. O tempo  sempre flui, o perdemos inevitavelmente e de forma constante. Por isso é inconsistente afirmar que uma vida repleta de memórias seja melhor que outra mais vazia delas. Muito menos que uma coleção de lembranças acalenta o homem no final da vida. Na realidade mal pode-se falar de “uma vida bem aproveitada” e tão somente “vive-se bem”.  Por isso, erram tanto os mesquinhos quanto os inconsequentes, a juventude romântica que vive o presente negligenciando as dificuldades que poderão encontrar na velhice, sem planos ou provisões para a mesma. Vale dizer, a velhice só será doce se naquele momento houver açúcar. Não adiantará de nada a lembrança de que um dia os teve aos montes.  


domingo, 24 de abril de 2011

A Criação de Vitória

Bruta solidão Vitória, bruta. Arremeda o som do pássaro, canta a gaivota , imita o verão. Não urubus, não a realidade. Não a pedra e a mata verde escura, não o rio que inunda e os homens rotos. Nada de casas toscas, madeiras empilhadas, cobras serpenteando águas enlameadas no fundo do quintal, ruas esburacadas. Vitória quer criar-se através do oculto, das histórias e dos mistérios. A passividade lhe aflige, a formação do seu ego é uma imensa batalha travada pela ação. Criar-se, trabalho hercúleo. 
Assim, em um dia comum, Vitória se esclarece. Percebe que só receber os estímulos do mundo não mais lhe cabe. Que assim será a não ser ninguém. Resolve no dia doze do mês de outono arremessar-se, despir-se da sua “persona”. Quem mais? Ela, só ela; então Vitória. Primeiro quis desfazer-se de tanta lógica, tanta linguagem pensada que desfigurava seu ser – deformava-o.  Procurou lembrar dos seus sonhos , do que lhe aparecia de olhos fechados, relatos de outro continente. Mergulhou cheia de medo nessas águas escuras, relatou em papéis toda a violência do outro mundo e seus desejos inconfessáveis. Vitória ardeu naquele labirinto, morreu de sede e de fome, enfrentou figuras mitológicas, viu dragão, depois minotauro, colocou sua boca na boca de outros sexos. Também quis matar. Vitória não era boa nem má. Vitória insensata cheia de ódio amarelo, raiva vermelha. Vitória, de repente, era azul.
Febril amplidão Vitória, febril liberdade de ser. Desde então ativa, pois sôfrega por seu temerário caminho, por sua breve estada. A consciência da fugacidade do tempo, da infinita renovação das coisas a qual faz parte, do retorno e retorno e retorno. Desde então sua dor e si: essas duas fontes –duras fontes- de vida e enfrentamento. Despe-se, procura o contato com o próprio corpo, conhecer-se como sensação física. Seu corpo não era menos de si, ele dirigia suas vontades como um deus rumo ao indistinto, ao não planejado. Ele como fonte de força e graça. Nua pôs a mão em si, pôs seu corpo sobre outro e através do outro percebeu-se.  Ser pleno é atravessar um outro Vitória – não é ser só. Então lapida a bruta solidão Vitória, lapida. E faz pérola o diamante.
Sim, que esteve cativa, anos e anos no embuste padrão, naquilo que não se sente. Não se sente, não se é. Agora liberta, Vitória busca uma arte, uma expressão para si, suas cores. É preciso dizer a seu modo, claro. Então sê , então diz: invólucro, água, gato, arremata. Diz tudo que lhe encanta. Afinal, afinal. Canta mais. Seguiu uma busca por corantes, adquiriu aquarela e desenhou no papel alguns traços: redondos, retos, entrelaço. E formou uma imagem multicores inexata, sem igual na natureza ou somente na natureza de si mesma. Lindamente capturou-se na tela e mostrou-a em exposição nacional. Outros olhos a sentiram delicados, todos nela. Vitória nascida, renascida. Vitória eterna.

domingo, 20 de março de 2011

A Cidade Branca

Pedras brancas macias, polidas pelos ventos, vastas colunas gregas ornam a cidade branca. Mármores e camafeus. Uma flor de lótus representa um deus no centro das suas praças circulares. Outro ser galopa, um unicórnio corta a brancura do ar, avança sobre fontes donde jorram leites, sobre templos. Jonathan é o único homem da cidade branca e se veste com uma máscara de Zeus. Ele talha esculturas brancas sobre sua cidade, perfaz estátuas de homens e animais que se espalham pelos quatro cantos do reinado. Inscreveu sobre uma pedra o formato da raia e sua longa cauda. Agora esculpe o quadrado e a estrela de oito pontas.
Circunda os limites da cidade, ondula, o mar cujas espumas claras trazem pequeninos cristais ovais para o baixio. Ali, aves pernaltas, de oito palmos redondos, dançam elegantes o canto sagrado do mar. Em tanto de seis movem-se harmônicas e circulares sobre a areia deixando nela a marca compassada das suas passadas. No segundo seguinte neva. Transpassa os corpos das pedras o som da harpa e por todo tempo, no horizonte, a luz se renova e atinge, com a união das suas cores, a alma de todas as coisas. Uma luz branca, sem sol, enorme por sua constância e intensidade.

sábado, 19 de março de 2011


De repente, a conclusão de uma angústia é a descoberta do nada. Da sua não-solução. Com que armas se avança no objeto ausente?  De repente, a imagem da angústia é o infinito do branco (onde nosso ser não se abriga). De repente, angustia o homem como sucede ao dia escuridão. Como pressuposto – ou condição.



 
Circles in a Circle - 1923

“Tudo que está morto palpita. Não apenas o que pertence à poesia, às estrelas, à lua , aos bosques e às flores, mas também um simples botão branco de calça a cintilar na lama da rua... Tudo possui uma alma secreta, que se cala mais do que fala.”

Wassily Kandinsky

sexta-feira, 18 de março de 2011

quarta-feira, 9 de março de 2011

Soul Retrô


Eles são contemporâneos, mas seu som retoma o soul dos anos sessenta e setenta. Sharon Jones apareceu tardiamente, talvez por não fazer o tipo moça bonitinha ou maluquinha como Joss Stone e Amy Winehouse. Seu vozeirão não deixa nada a desejar  para as duas, aliás dá até um passo além. Mas sempre com uma forte inspiração no passado. Quem quiser uma "palhinha" este é o site oficial do seu álbum mais recente (que por sinal é ótimo) :  www.sharonjonesandthedapkings.com

segunda-feira, 7 de março de 2011

Café com Leite


 Quem não gosta de tomar leite com chocolate (ou café) no meio da tarde?  Lá pelas quatro horas dar uma parada no trabalho para se deliciar com essa combinação saborosa, que podendo ser quente ou gelada, se adapta a qualquer clima da Terra. Além de gostoso é uma boa desculpa para relaxar e bater papo com aquela pessoa que você adora (ou fugir de uma alma sebosa que assombra seu departamento – sempre existe uma). Vou arriscar dizendo que esse tipo de hábito até melhora a qualidade de vida, coisa de gente legal, que sabe relaxar. Mas outro dia um amigo, bem aquele do tipo desencanado, veio com uma assim: não vou mais tomar porque escurece os dentes. Na hora só pude pensar, até tu Brutus! Ah não! E tentei convencê-lo de que isso era besteira porque como me disse certa vez outra pessoa querida: “viver escurece os dentes”. Pois é, eu também quase caí nessa, mas felizmente um iluminado me fez enxergar o quanto é absurdo esse tipo de comportamento. E a maluquice não pára por aí. A paranóia da pigmentação dentária é só uma dentre as inúmeras instruções do manual da estética perfeita (e diga-se de passagem artificial, despersonalizada, sem graça mesmo). Outro caso foi de uma mulher que, embora não tivesse nenhum problema para atrair os olhares dos rapazes, quis ainda assim se submeter a uma operação agressiva para ficar com  o corpo mais enxuto (posso garantir, ela não era gorda, seu único “defeito” era não ser a Audrey Hepburn). E o pior: usou seu tempo de férias para isso. Tentei lhe dizer que era bonita daquele jeito, para pegar o dinheiro da operação e ir ver as águas claras do mar caribenho ao invés das paredes brancas de um hospital deprimente. É claro que ela não me ouviu, no mínimo deve ter pensado que eu era uma competidora e a queria ver “feia”. Além do mais, um argumento de segundos nunca seria suficiente para superar anos e anos de doutrinação da revista Vogue (e afins). Como esse, quantos casos já ouvi por aí, de pessoas que se submetem a operações cirúrgicas arriscadas, doloridas e caras a fim de não necessariamente ficarem mais bonitas, mas sim ficarem mais parecidas umas com as outras. Não sou contra as pessoas se cuidarem. Acho isso ótimo, desejável, saudável, é um sinal de amor-próprio, auto-estima. Quem não gosta de gente que se gosta? Agora, há uma diferença bem clara entre o cuidado e a paranóia. Não é difícil distinguir. Passar fio dental e escovar os dentes é se cuidar, deixar de comer e beber um monte de coisa que você adora só para que eles fiquem mais brancos é paranóia. Realizar uma atividade física que você gosta é se cuidar, passar todo o seu tempo livre numa academia (que você não suporta) e deixar de ler, estudar, namorar, ouvir música (e de se tornar alguém mais interessante) é paranóia. Resumindo, quando alguém deixa de lado diversos elementos da sua individualidade, os quais são imprescindíveis para sua formação como ser único, especial que é, em prol de um conceito genérico de beleza, cai na terrível armadilha de se tornar uma pessoa chata (porque afinal deixou de fazer um monte de coisa que tinha vontade), sem graça, sem sal, açúcar, pimenta, um ser hipossódico enfim. E se esse argumento ainda não for suficiente, uma coisa é certa: você não será mais amado(a) por possuir um silicone no peito ou um dente mais alvo, acredite em mim. Se essas fossem questões tão essenciais Shakespeare não teria escrito Romeu e Julieta (afinal naquele tempo nem pasta de dente devia ter) . O amor é um pouquinho mais complexo que isso. Ufa! ainda bem! :-)

domingo, 6 de março de 2011

A Chuva do Norte

Soa o trovão estrondoso - escurece - nuvens negras cobrem o céu azul. Um sopro fresco alivia rostos morenos do calor e um vento forte desafia a rigidez das plantas; as estruturas frágeis das casas simples. São prenúncios de chuva na região norte. Ela cai sobre a mata e calçadas, homens e bichos se escondem. A chuva é dadivosa no norte. Seu estribilho acalenta os corações apertados que ali vivem porque sobe da terra um cheiro de terra prazeroso, as ruas esvaziam, silenciam e o ar refresca. A chuva do norte é branca e pacifica - chuva água que intensifica o que é bom e esconde o ruim. Que vontade de ouvir seu burburinho de gota batendo na folha, no galho e no telhado por muito e muito tempo, música boa de se ouvir. A chuva balança o rio e faz com que ele cresça ameaçador sob a ponte, com que avance centímetros assustadores. A criança na janela da casa de madeira olha a chuva desconfiada, os adultos se escondem e vão ver televisão; os adultos se esqueceram de quão impressionante a chuva é. Basta mira-la por alguns  segundos para então perceber toda sua beleza.
Não pare chuva de chover, chova mais e conte ao homem a história de sua eterna pequenez; do seu controle ilusório da natureza. A chuva do norte não tem igual, é como um deus poderoso que desce dos céus para se exibir aos homens e lembrá-los de que há algo grandioso no entorno de si.


sexta-feira, 4 de março de 2011